quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Bocetas de Marmelada

Suspeito que há mais diferenças entre o português falado no Rio de Janeiro e aquele utilizado em Pernambuco, do que entre o português dos cariocas e o dos alfacinhas.

No Brasil nenhum jornal me deixaria utilizar a expressão acima como título de uma crónica. Em muitas aldeias portuguesas, porém, é vulgar encontrar este anúncio à porta de pequenas mercearias. "Boceta" entre os portugueses manteve o seu sentido original, caixinha, enquanto no Brasil ganhou por explícita analogia um significado novo, perdendo-se a memória do anterior. O dicionário Aurélio regista em primeiro lugar a palavra no sentido português, utilizando como exemplo uma frase de Fialho de Almeida em "Lisboa Galante": "Bocetas atochadas de pastilhas e docinhos perfumados." Para um brasileiro, a mesma frase recorda inevitavelmente (e com escândalo) cenas de certos filmes eróticos, como "Nove Semanas e Meia", que tentaram levar, com escasso sucesso, a cama para a cozinha.

Situações deste tipo geram, é claro, inúmeros equívocos e levam a que volta e meia surjam na imprensa artigos alertando para o afastamento entre o português que se fala no Brasil e em Portugal. Os portugueses falam disto com alarme, talvez com disfarçada mágoa, enquanto no Brasil a mesma ideia é por vezes defendida com propósitos de falaciosa exaltação nacionalista, "no Brasil não se fala português, fala-se brasileiro".

Será mesmo assim? Em primeiro lugar, teríamos que chegar a um acordo sobre a variante do português brasileiro que queremos comparar com o português falado em Portugal. No que diz respeito apenas ao vocabulário, suspeito que há mais diferenças entre o português falado no Rio de Janeiro e aquele utilizado em Pernambuco, do que entre o português dos cariocas e o dos alfacinhas. Nos últimos anos, aliás, têm surgido diversos dicionários de termos nordestinos (para uso de cariocas e paulistas), dos quais o melhor e mais divertido é sem dúvida "Assim Falava Lampião", de Fred Navarro. Na apresentação do livro, o compositor António Nóbrega exalta "os velhos fazedores de língua e cultura brasileiras (...) os emboladores (cantores populares), raizeiros (ervanários), brincantes de várias espécies que desarrumando, despedaçando os padrões habituais da língua, criam outra mais rica, ampliada e mais uníssona com a nossa alma colectiva".

Tudo isto é verdade. Curiosamente, porém, alguns dos termos que mais marcam a fala nordestina, e que merecem destaque no livro de Navarro, são profundamente portugueses. Trata-se de palavras ou expressões que foram esquecidas em Portugal mas que permaneceram vivas do outro lado do mar. É o caso, por exemplo, de "aperrear" (aborrecer). Em qualquer novela brasileira, não há personagem nordestino que não encha a boca com este feio verbo e seus derivados. "Aperrear" significava na origem perseguir com perros, cães, sendo fácil compreender a sua evolução semântica. Arretado (bom, gostoso) é outra expressão que muita gente julga ter nascido no Nordeste - "eta, forró arretado!" - e que no entanto descende em linha directa do latim "arrectare", levantar, erguer, com óbvia conotação sexual. Lembro-me ainda do verbo "mangar", que a minha avó, natural de Ílhavo, utilizava frequentemente com o sentido de fazer troça, e que me foi apresentado no Recife, com o mesmo sentido, como um inequívoco regionalismo.

Nesta incessante troca de palavras de que se fazem as malhas da lusofonia, vale a pena referir ainda o termo "machimbombo" (autocarro), que angolanos e moçambicanos julgam ser de origem africana. Duvido. Machimbombo era uma palavra muito comum no Brasil até finais do século XIX, acreditando-se que possa ter resultado de uma expressão americana com que na mesma época era uso designar os novos e ruidosos veículos a motor "machine-boom-boom".

Conheci em Brasília, há alguns meses, um estudante angolano que escreveu um livro contando os equívocos em que se viu envolvido enquanto não foi capaz de dominar por completo as subtilezas das diversas variantes da nossa língua. Conta ele que um dia, sentindo frio, entrou numa loja para comprar uma camisola. O vendedor estranhou:

- É para a sua esposa?

O estudante, ignorando que no Brasil a palavra camisola tem o sentido de camisa de dormir, insistiu:

- Não, não senhor, é mesmo para mim.

O vendedor piscou o olho para o colega:

- Este é um entendido...

Queria dizer um homossexual. O meu amigo aborreceu-se:

- Entendido? Ao contrário, pouco entendo de camisolas, mas estou com frio. Pode ser aquela castanha que está na montra.

- Na montra?!

Finalmente fez-se luz no espírito do vendedor:

- O que você quer é o "suéter marrom" que está na vitrine. Porque não se explicou logo em bom português?

Quanto a mim, não há porque recear. O que estes equívocos demonstram é que para colonizar diferentes ecossistemas, como qualquer outro ser vivo, a língua portuguesa teve de se adaptar, criou variedades, e com isso tornou-se mais flexível e resistente. É bom saber, por outro lado, que se uma palavra se perdeu em Portugal, ela pode talvez ser encontrada, viva e de boa saúde, numa roda de peões em Mato Grosso, num jogo de meninos em Luanda, ou na letra de uma morna em São Vicente.

José Eduardo Agualusa, Público, 24/04/2000

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