quinta-feira, 11 de outubro de 2012

"Sandwich" Ou Sandes? Não É Essa a Questão

Por POR CELESTE ARAÚJO

Domingo, 11 de Maio de 2003

"Estou em stresse, o meu laptop crashou." Hoje fala-se e escreve-se assim português, mas a importação de palavras inglesas não preocupa a maioria dos linguistas. Os especialistas da língua estão apreensivos com outras mudanças - as pequenas coisas invisíveis. São elas, dizem mais de 20 investigadores, linguistas e tradutores, que alteram a estrutura da língua e estão a mudar o português.

A progressiva anulação das pronúncias regionais e a simplificação das frases são as modificações que os linguistas apontam como as mais significativas para o futuro do português. "Estas mudanças invisíveis afectam a estrutura da língua mais do que o empréstimo de palavras inglesas", diz Ivo Castro, professor da Universidade de Lisboa. E esta é a língua emergente dos meios de comunicação e da linguagem técnica - mais desterritorializada e globalizada - e que é cada vez mais dominante.

O processo não afecta apenas o português, uma vez que todas as línguas tendem hoje a desvincular-se da tradição cultural porque usam cada vez mais termos "transnacionais". E o processo não é apenas linguístico; é também económico, cultural e científico. Dos rodapés de televisão ao correio electrónico, das mensagens SMS às salas de conversa na Internet, assiste-se a um aligeiramento da escrita que acompanha a instabilidade dos meios. Uma escrita volátil, funcional, na qual a construção das frases é simplificada até ao limite. Mas isso também não é o que mais preocupa os estudiosos: estas são manifestações de carácter lúdico, são efémeras e por isso não descaracterizam o português.

Língua fechada = língua vulnerável

Todos os especialistas partem da mesma ideia: a língua é um organismo vivo, em constante movimento. "É porque muda que a língua funciona", diz Paulo Osório, professor da Universidade da Covilhã. "Uma língua fechada, sem contacto, é uma língua local e regional e por isso vulnerável", diz Fernando Gonçalves, tradutor e professor na Universidade de Coimbra. "Entrar a fundo numa língua implica sempre sair dela", continua Gonçalves, explicando que os estrangeirismos vindos do francês (como dossiê), castelhano (como ampulheta), ou árabe (alguidar), enriqueceram o português. "O que muda actualmente é que as diferenças fonéticas e da estrutura gramatical entre o português e o inglês tornam o processo visível", diz Ivo Castro.

Influências do inglês no português

O facto é que a influência do inglês é hoje inevitável e o seu poder é evidente. O inglês é a língua franca que domina a economia, a ciência, a comunicação, a tecnologia e a cultura. "Portugal é um país periférico, obrigado a importar tudo. E com a importação chegam os termos estrangeiros", diz Francisco Magalhães, Presidente da Associação Portuguesa de Tradutores. "O inglês tem de influenciar o português porque tem mais para dar do que para receber. E isso só é reprovável quando se trata de apropriações inúteis."

Ou seja, a incorporação de palavras inglesas não afecta necessariamente a identidade do português. Quando respeita a estrutura, pode até contribuir para o enriquecimento e vitalidade da língua. Mas a importação sintáctica, a que altera a construção das frases, é motivo de preocupação e descaracteriza o idioma, segundo opinião geral de mais de dezoito estudiosos da língua. O SMS escapa a este grupo porque as alterações que ocorrem são acima de tudo visuais.

A influência do inglês no português é maior ao nível do léxico. O Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) analisou o processo de integração dos novos termos a partir de uma recolha de estrangeirismos na comunicação social, cuja classificação usamos para percorrer os vários tipos de impacto do inglês.

Empréstimos lexicais

Palavras como "crashar", "deletar", "printar", "checkar", "stressar", emprestadas do inglês, sofrem uma adaptação fonética e escrita à estrutura do português. "Os empréstimos em Portugal são normalmente aportuguesados, ou quando não sofrem estas alterações, colocam-se entre aspas", diz o professor universitário Erwin Koller, responsável por um seminário que investiga o empréstimo lexical do inglês no português em comparação com o alemão. Neste sentido, continua, "o Novo Dicionário da Academia segue uma política muito ponderada ao aportuguesar [ao nível da escrita e da fonética] as palavras que toma emprestadas ao inglês".

As expressões estrangeiras são constantes nas áreas específicas - economia, informática, música, ciência - incorporadas no português, muitas vezes sem aportuguesamento. Palavras como "outsourcing", "cross selling", "upgrading", "off shore", "groove", "download", "bass line", "hype" entre outras, são exemplos de palavras habituais na comunicação social e em linguagens técnicas, usadas sem tradução. Para Teresa Lino, que investiga na área da terminologia técnica na Universidade Nova de Lisboa, as linguagens técnicas levantam outro tipo de preocupações. "Além de resistirem ao aportuguesamento, as linguagens específicas incorporaram formas sintácticas do inglês."

Empréstimos semânticos

Há também alterações invisíveis ao nível do significado das palavras. Os decalques - designação do ILTEC - expressões como "baixo-perfil" ("low profile"), ou "política de género" ("gender policy"), não são formas lexicais novas, mas traduções literais de termos ou expressões inglesas. Dentro destes empréstimos semânticos existem os chamados falsos amigos. "Realizar", usado no sentido de compreender ("realize"); "compreender", usado no sentido de abranger ("comprehensive"); "pretender" no sentido de simular ("to pretend"), termos que recebem um novo significado por influência do inglês (ver caixa).

Mas aqui não há consenso. Para alguns linguistas, como Ivo Castro, Erwin Koller, Teresa Lino e para o ILTEC, estas mudanças semânticas são "associações inovadoras". "Extensões de significados que não afectam a estrutura do português, antes pelo contrário, mostram a sua produtividade e criatividade", resume o professor Ivo Castro.

Para outros, como Mário Vilela, professor da Universidade do Porto, Paulo Osório, e alguns tradutores, estes casos são resultado de má tradução e levantam problemas de compreensão. "Não se trata de um processo criativo, mas de falta de conhecimento, o que conduz à desfiguração da língua", diz Mário Vilela. Já Malaca Casteleiro, professor da Universidade de Lisboa e coordenador do controverso "Novo Dicionário da Academia", diz que tem que se ver caso a caso: uns poderão ser exemplos de criação lexical, outros de perturbação da língua.

Empréstimos sintácticos

O grande problema, portanto, são os empréstimos sintácticos, os tais que alteram a estrutura do português, porque modificam a construção das frases. Se são os que mais preocupam os linguistas, são também os mais difíceis de identificar.

Coisas como a utilização da voz passiva em contextos onde o português pede voz activa. "No raide ontem lançado pela infantaria americana foi conquistado o centro da capital e tomado o palácio (...)." (PÚBLICO, 8 de Abril). Outro exemplo corrente é o "ser suposto", tradução literal de "is supposed to". O uso impróprio do adjectivo antes do sujeito revela, muitas vezes, influência anglo-saxónica, como no caso "Pesadas penas de prisão para sete dissidentes" (PÚBLICO, edição citada).

O inglês tem a agilidade de construir frases curtas e o audiovisual, a imprensa escrita e a publicidade cedem ao simplificar as estruturas do português. Frases e parágrafos cada vez mais curtos, com redução do léxico ao mínimo, sem ambiguidades nem redundâncias. O processo faz-se suprimindo termos de ligação necessários, como "que", "se" ou "de". "O gosto que gosto", frase publicitária onde há uma supressão do "de" quando em português o verbo gostar o exige. Na frase "A lotação esgotou", muito comum, há uma supressão do "se" e o verbo é reflexivo e exige-o.

Estes exemplos são apontados por estudiosos como as construções que mais incomodam. Em português resulta em frases pouco fluentes, entrecortadas "como um automóvel aos solavancos", diz Fernando Gonçalves. "É uma questão de ritmo, aquilo que faz falta à língua portuguesa escrita e falada nos meios de comunicação".

O uso dos estrangeirismos é corrente em grupos restritos em áreas específicas. "É um fenómeno urbano", diz Teresa Lino. A comunidade integra-os de maneira inconsciente, através da comunicação social. Trata-se de um processo que se desencadeia de cima para baixo, dos meios de comunicação, do mercado e dos produtos culturais para o cidadão comum. "Os meios de comunicação têm um poder normativo no uso quotidiano da língua, mais do que a escola ou um congresso de linguística", diz Carlos Reis, professor da Universidade de Coimbra.

A profusão de estrangeirismos nos média dificulta a compreensão, principalmente em áreas onde os assuntos são também barreiras. Neste sentido, Malaca Casteleiro diz que "a televisão e os jornais deveriam fazer um esforço de tradução dos termos importados que empregam".

Unidade ou diversidade do português

E o facto é que o próprio inglês não fica incólume. Difundido, acaba por assumir tonalidades locais. As línguas adoptam comportamentos diferentes na integração de estrangeirismos. O processo é distinto nas várias regiões onde se fala português, principalmente no Brasil, onde a influência dos anglicismos é muito maior.

Neste sentido, Ivo Castro diz que "o português falado em Portugal, na África e no Brasil tende a afastar-se e a constituir-se com normas independentes". Esta opinião é partilhada por Teresa Lino, o linguista e escritor Vasco Graça Moura e João Saramago, investigador na Universidade de Lisboa, para quem a língua falada em continentes diferentes dará origem a "variedades" cada vez mais marcadas.

Mas Carlos Reis e Malaca Casteleiro prevêem o oposto: dizem que o português de Portugal tende a aproximar-se do português falado no Brasil. "Há instrumentos que contribuem para a unidade da língua", diz Casteleiro. Carlos Reis afirma que "esta convergência é indispensável para assegurar a sobrevivência do português com língua internacional".

Política da língua

A incorporação de novas terminologias é, segundo Adriano Duarte Rodrigues, da Universidade Nova de Lisboa, "prova da flexibilidade da língua e ao mesmo tempo sintoma da insuficiência do nosso desenvolvimento nas áreas cientificas, técnicas, económicas e culturais".

Por essa e outras razões, a maioria dos linguistas diz que a política da língua não deve passar pela criação de quotas para estrangeirismos - uma espécie de "alfândega da palavra" - como acontece em França, onde há uma política de defesa da língua com a "Lei Tobon" e uma instituição que apresenta recomendações oficiais para palavras estrangeiras. Por exemplo: "prêt-à-manger" para "fast-food".

Mas deve passar pela criação de mais objectos, mais conceitos, mais cultura. As palavras são sempre importadas sobre um suporte e não poderá evitar-se o empréstimo com a crescente importação de produtos culturais, económicos e tecnológicos. "Uma língua defende-se promovendo a cultura. Uma língua é um envelope vazio se não tiver nada lá dentro", diz Francisco Magalhães, acrescentando que "só pede emprestado quem não têm".

Defendem a criação de princípios de apoio à difusão do português no mundo (ensino, divulgação cultural e tradução); organismos que apoiem a procura dos "bons equivalentes" para expressões estrangeiras, e uma boa formação linguística dos jornalistas, com residência de linguistas e tradutores nas redacções. Estas são, dizem, as medidas pragmáticas mais indicadas para a constituição de uma política da língua ainda inexistente em Portugal.

O português em 2103

Ninguém se atreve a especular como o português será dentro de 100 anos. Mas no futuro sem data determinada, os linguistas prevêem um português mais simplificado sintacticamente e mais anglicizado em termos lexicais. Haverá uma progressiva anulação das diferentes variedades da língua, uma vez que as pronúncias caminham no sentido da neutralização. Existem também várias palavras que estão a entrar em desuso (ver caixa).

O carmim nos anos 50 foi substituído pelo "rouge", e o "rouge" converteu-se agora em "blush". Os empréstimos que fazem falta mantêm-se, os outros desaparecem. É a própria língua a depurar e a eliminar o que não faz falta. Fica o necessário.

*com Raquel Ribeiro e Raquel Schefer

(retirado do livro de estilo do jornal Público)

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