Uma viagem ao Oclaoma, a São Diogo, a Wachintónia e outros lugares secretos da ortografia
Quando nesta casa [jornal Expresso] foi instalado um corrector ortográfico, apercebi-me de que essa criatura virtual, ou de «software» (que os franceses dizem «logiciel»), não conhecia ainda a diferença entre «corrector» e «corretor». Se calhar foi esse equipamento, entretanto melhorado, que na semana passada me obrigou a escrever «Alasca».
O horror aos estrangeirismos e aos vocábulos de outras línguas é corrente entre os que nos ensinam como se deve escrever português. No entanto, se lembrarmos que a língua portuguesa, oriunda do latim (hoje por muitos tratado como língua «estrangeira»), foi incorporando palavras e construções de desvairadas origens, e que é inevitável usarmos palavras realmente estrangeiras, somos levados a reacções mais flexíveis ou relativistas. De facto, o próprio «fundador da nacionalidade», D. Afonso Henriques, era «estrangeiro» de pai e mãe, e do seu bilhete de identidade, se existisse, talvez não constasse «nacionalidade portuguesa». Isto recorda-me a frase, ridícula mas judiciosa, «o Direito Romano começou por não existir» (tirada, salvo erro, de uma obra que foi famosa na Academia de Coimbra, O Livro do Dr. Assis). Há quem observe, aliás, que mesmo a palavra «estrangeirismo» é um...estrangeirismo («estrangeiro» vem do francês antigo «estranger», disse Raul Machado). Mas a atitude dominante entre os que escrevem vocabulários e prontuários é a de banir as palavras com aspecto estrangeiro, considerando que quem as usa é mau português, pouco patriota, quem sabe se mau chefe de família.
Nesta matéria, como noutras, conviria o equilíbrio e o bom senso. Evito o «constatar», o «é suposto» e o «face a» (contágios do francês e do inglês), evito construções brasileiras que não nos façam falta (hoje são tantas que nem dou exemplos), mas não sou purista. Por exemplo, não acho boa ideia a tentativa de aportuguesar hoje todos os topónimos. Aceito, claro, os aportuguesados há séculos, como Londres, Genebra ou Terra Nova (e não Newfoundland). Mas não escreveria Alasca, Cansas ou Oclaoma para designar estados norte-americanos. Tal como não escrevero «Quente» ou «Sussexe» para designar condados ingleses (e aqui estou na boa companhia de José Pedro Machado, que usou Kent e Sussex).
A quem quiser fazer o exercício, sugiro que aportuguesem Iowa, Washington, Wyoming, Idaho, Wisconsin, Kentucky, Tennessee, Delaware, New Hampshire, Rhode Island... Bem sei que alguns já o tentaram, mas o resultado é muito discutível. Para Washington chegou-se a Wachintónia, Vachintónia ou quejandos - ou seja, chegou-se demasiado longe. Alasca, desculpem, faz-me lembrar «A lasca», a pedra lascada, as grutas de Lascaux, o Paleolítico e outros vestígios da cadeira de Pré-História. E qual é a vantagem de escrever Massachussetes? Com os estados de nome hispânico o caso é outro: ou não há lugar a portuguesamento (como em Nevada ou Florida), ou basta pôr um acento (como em Califórnia), ou traduzir o adjectivo e pôr um acento no substantivo (como em Novo México).
Creio, pois, que a dita prática é um desperdício de tempo e de energias, e aumenta em regra a ininteligibilidade. Deixaríamos de perceber grande parte dos mapas, as indicações nas estradas e nos aeroportos, etc. Além disso, é cansativo escrever Cansas, e a palavra Arcansas faz-me arquejar. E que fazer de Pennsylvania? Os espertos (que se diriam «experts» não fora o estrangeirismo) proclamariam, triunfantes, «Pensilvânia». Ora acontece que o primeiro elemento da palavra não é Pen, mas Penn (de William Penn). Quanto ao Havai, é curioso que o tenhamos aportuguesado, quando os norte-americanos, que tardiamente se apoderaram do arquipélago, o designam por «Hawaii», termo que não tem nada de inglês. Quando os nossos prontuários explicam «Oclaoma» (quem mais no planeta escreve assim?) como «equivalente do inglês Oklahoma», pergunto: será inglês, ou procede de um dos idiomas ameríndios (esse estado tem origem no «Indian Territory»)?
Passa-se idêntico fenómeno com as cidades norte-americanas: se os nomes espanhóis como San Francisco, San Diego, Sacramento, Los Angeles, etc., não foram alterados pelos próprios «gringos» que ocuparam a Califórnia, por que carga de água ou de nacionalismo equivocado os devemos nós transformar em São Francisco, São Diogo ou Os Anjos?
Francisco Belard, Expresso, 10/02/2001
Transcrito do site Ciberdúvidas / Controvérsias / 16/2/2001
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