Que diferença há entre o português falado em Portugal e o português falado no Brasil? E até que ponto os portugueses adoptaram já termos que nada lhes dizem?
O espanhol sul-americano e o português do Brasil vão acabar fundidos num só idioma, «uma espécie de portunhol», afirmou recentemente à revista brasileira «Veja» o linguista americano Steven R. Fischer. Levará trezentos anos, mas o desenlace já é, segundo ele, inelutável. Aí está uma notícia impressionante, faltando só saber se ela fará hoje alguém feliz. Demais, ninguém dos vivos estará cá para verificá-lo. Será caso, portanto, de pormos a fé no cientista? Apeteceria fazê-lo, já que a linguística é uma ciência das mais sérias. Depois, à primeira vista, o raciocínio colhe. «O Brasil está cercado de países que falam espanhol. À medida que as trocas comerciais e os contactos aumentarem, haverá mais pressão.» Certo. E, todavia, Fischer pode bem enganar-se. Há mesmo razões para supor que alguma grande ilusão o vitimou. As influências entre as línguas seguem caminhos muito pouco lineares, com processos complexos e mesmo inversões de marcha. Um exemplo recente e aparatoso de tão incertos caminhos é o das interferências do português brasileiro na variante europeia. A julgar pela leitura dos jornais portugueses actuais, essa transfusão entrou em nítido refluxo. Felizmente? Infelizmente? Risque você mesmo a alternativa inadequada.
Tratava-se de um fenómeno, importa dizê-lo, com tanto de inesperado como de curioso. Seria mesmo uma regalia podermos assistir no tempo da nossa vida - um tempo sempre linguisticamente curto - a uma reformulação do nosso próprio idioma. Há vinte anos, tudo parecia indicar que as modalidades brasileiras, infiltradas pelas telenovelas, iam assentando arraiais na nossa escrita e na nossa fala, prevendo-se-lhes um grande futuro. Ao fim e ao cabo, havia já então milhares de crianças que, pela tarde fora, sozinhas em casa, à espera de pais exaustos, e depois durante o jantar e o serão, arrecadavam nos ouvidos mais brasileiro do que português. A receptiva e sensível alma infantil não esqueceria jamais esse investimento afectivo que, através de boas histórias e magníficos actores, as novelas lhe traziam. Afinal, as mais bonitas palavras ouviam-nas os miúdos não em português mas em brasileiro. Era, portanto, uma questão de tempo. Os processos psicológicos fariam o resto.
Ora, basta seguir hoje com atenção conversas de adolescentes, nos recreios das escolas ou nos transportes públicos, para verificar que, dessas horas de abandono e emoção passadas em frente do televisor, só residualmente algo passou à linguagem activa. Umas achegas ao léxico, uma fugidia inflexão na sintaxe, e os malfadados «Tudo bem?» e «Veja só!»... Na nossa pronúncia, nada até hoje se modificou, ou será só o caso desse número assustador de portugueses que, em meia dúzia de anos, passou a pronunciar «chegámos ontem» do mesmo modo que «chegamos ontem». Mas alguns modismos brasileiros entraram para ficar. É possivelmente o caso da fórmula interrogativa «Será que...?» (só a conhecíamos com a adversativa «Ou será que...?, e, criativos que somos, formámos depois a variante «Seria que...?», para o passado), o caso de sequências como «tão simpático quanto ela» (anteriormente de uso condicionado, por exemplo em «tão confortável quanto caro»), da construção adverbial «só que», de giros do tipo «estar numa de...», «chamar de...», «falou que...», ou ainda de locuções do género «até que ele tem razão» (em vez de «ele até tem razão») ou «só mesmo na Baixa». A absorção brasileira conduz ainda, aqui e ali, a formulações híbridas, como «em tudo quanto é sítio», ou (ouvida num autocarro) «deu imenso para a malta curtir», ou (no disco «FMI», de José Mário Branco) «estamos numa porreira», que são já meio português meio brasileiro. Pode, no entanto, asseverar-se que o falante médio não tem qualquer noção da procedência estrangeira da maioria desses ditos. E já lá vai o tempo em que portugueses sensíveis se desculpavam com um tímido «como dizem os brasileiros».
Mas podemos estar tranquilos. Casos graves, como um «vou avisar ele», reportado pela televisiva Edite Estrela, mantêm-se isolados. O edifício do nosso português, do mais culto ao mais ordinário, continua miraculosamente sólido. Uma frase como: «Vi a gaja com um puto na bicha do eléctrico», corrente para nós mas puro código para um brasileiro (bem, por esta vez: «Vi a sujeita com um guri na fila do bonde»), está de pedra e cal. Os tempos já foram, todavia, bem outros. Há quinze, vinte anos, era habitual dar em contextos mais prestigiados, como peças de jornal, com construções estranhas ao nosso padrão e irrecusavelmente brasileiras. Atracção da novidade, sedução pelo «estrangeiro», exibicionismo, rompimento com as normas, habituação do público - algum destes factores, ou todos eles juntos, respondiam pelas ocorrências.
Um exemplo simples. Em Abril de 1981, uma reportagem do «Expresso» sobre a tarefa quotidiana da polícia fazia um agente dizer: «Ela é livre, não pode obrigá-la a viver consigo.» Ao que um moço respondia: «Mas a gente se gosta. Ela estava namorando à minha frente com outro cara. À minha frente não consinto. Eu só queria bater um papo numa boa, para ela voltar comigo.» O rapaz era brasileiro, claro. Mas o que pode ter-se por certo é que, uns anos antes, o jornalista teria feito vasto uso de aspas, se é que transpunha, ou sequer valorizava, uma fala tão peregrina. A tolerância fizera-se, portanto, grande. Tinham-se, por então, tornado vulgares em textos de imprensa, e na maior das inocências, locuções como: «Desalojado, não dá para comemorar» (título do «Diário de Lisboa»); «Entrou numa de compromisso» («Jornal de Letras»); «Estudo que fiz antes do 25 de Abril, a censura cortou» («DL»); «Era efectivamente um relógio. Até que de boa marca» («Expresso»); «Pirata, eu? Cadê os outros?» («JL»). Em todos estes casos - e são exemplos de entre centenas -, o contexto era irrepreensivelmente português.
Os factos tomaram dimensão mais séria quando uma sintaxe que se supunha inviolável deu em abrir brechas. Se alguma coisa nos distinguia dos brasileiros era, pensávamos, a colocação do pronome pessoal átono, obediente entre nós a rijas normas. Pois bem, os jornais portugueses perderam a cabeça. Liam-se frases (garantimos a lusitanidade de jornalistas ou entrevistados) como: «Assim falou-nos o brasileiro Douglas, médio sportinguista» («Correio da Manhã»); «O objectivo é (...) treinar pessoas que já falam o nosso idioma a se expressarem em situações concretas. (...) Trata-se de uma tendência que inevitavelmente irá se acentuar» («Expresso»); «Quando mais tarde Chaplin propôs-lhe o divórcio, ela suspira (...). Não me lembro de quantos anos ela tinha, mas se podia contá-los nos dedos das mãos e dos pés» («O Independente»). Um «cartoon» de «O Jornal» grafava: «Se não sabe se comportar à mesa dos grandes...». Uma cronista do «Diário de Notícias» abria com: «Bem, eu nunca sei o que mais irá me acontecer.» O maior assombro vinha, contudo, num subtítulo do «Expresso», de Outubro de 1979: «Se ultrapassaram os limites da correcção democrática». No corpo do artigo lia-se, evidentemente, «acho que se ultrapassaram». Mas o lapso mostrava quanto os olhos e os ouvidos lusitanos iam ficando embotados.
Hoje em dia, as coisas estão mais calmas. Os giros frásicos brasileiros assediam menos frequentemente os teclados portugueses. Pode, em «O Independente», aparecer ainda a legenda: «Guterres vai se ver pouco nas televisões»; ou ler-se, num recentíssimo «Público»: «Agora já dá para rir com a situação.» Tornaram-se casos raros. A velha gramaticalidade retomou a sua eficácia, ou foram os «copydesks» que decidiram ser menos tolerantes. Para quem sonhava com uma reaproximação das duas grandes variantes da língua portuguesa, os tempos voltaram a tornar-se difíceis. A deriva prossegue, menos espectacular do que pudessem desejar os que prezam sobretudo «as nossas coisas», mas mesmo assim imparável.
Para os brasileiros que se arrepiam à ideia de um dia vir a falar-se «portunhol» no seu país, tudo isto é uma boa notícia. Os idiomas são construções bem mais resistentes do que a futurologia linguística nos faria supor. Mesmo uma transfusão em massa de elementos lexicais não aproxima significativamente as línguas. Facilita a compreensão, é tudo. Mas a estrutura que distingue os idiomas, a sintaxe, tem uma teimosia que só permite previsões muito modestas. A questão sobre se brasileiros e portugueses escrevem o mesmo idioma é ociosa. Claro que escrevem. A outra questão, sobre se a língua que falam é a mesma, continuará em aberto, ao sabor das emoções de quem pensa no caso. Uma coisa parece certa: as cinquenta horas semanais de telenovelas brasileiras não mexem grandemente com o nosso português. Divertem, educam talvez. Mas não se lhes peça mais.
Fernando Venâncio, Expresso, 21/04/2000
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