Indivíduos não identificados só existem nos hospitais, morgues e cemitérios. Porque, logo à nascença, apanhamos com nomes próprios. Que traduzem afectos, desejos, convicções, quiçá conceitos estéticos dos nossos progenitores. Evocam santos protectores, heróis românticos, padrinhos e entes queridos já desaparecidos. Ou simplesmente nomes em moda.
Assim, nos anos 30, houve uma epidemia de Elizabethes, Goretes, Gracietes e Arletes. Na geração de 70, foram Patrícias Sofias, Cátias Alexandras e Carlas Vanessas. Excepto no Povo da Esquerda, claro. Aí, ficaram todas Catarinas, como a Virgem Vermelha, a Portas e a Furtado. Vá lá que escaparam da Eufémia. Soubessem os papás o vero significado da palavra «catarina» -- vasto mamalhal, seios úberes, bastos desenvolvidos -- que as ora vedetas da TV chamavam-se Rosas do Luxemburgo, Josinas Machéis e Nadedjas Constantinovnas, como Madame Lenine.
Enfim, com tantas Catarinas, distingui-las entre as demais, só pelos apelidos familiares. Os quais evocam lugares, ofícios, botânica ou zoologia. Exemplos: Aboins, Portos, Franças, Limas, Mondegos, Aroucas, Fontes, Regos, Pereiras, Cerejeiras, Nabos, Uvas, Trigos, Searas, Robalos, Cavacos, Cordeiros ou Coelhos. Agora reparo: todos os Coelhos meus amigos têm qualquer traço do dito, mais não seja um trejeito esquivo, alguma procidência dentária, um esgar como quem está sempre a roer o almoço.
Talvez que os apelidos resultem de alcunhas, como «Todo-Bom». Atente-se aos adjectivos: não é um nome, é um programa de vida. É o todo-poderoso patrão das telecomunicações, o tal que come INESQUES e Triboletes ao pequeno-almoço.
Há quem não aprecie alcunhas, porque ofensivas, pejorativas, depreciativas. Nada mais disparatado. Pois não está a História Pátria recheada de alcunhas ilustres, como D. Manuel o Venturoso, Afonso o Gordo, Pedro o Cru, o Capelo, o Conquistador, o Povoador, e, suprema ironia, Afonso VI, o Vitorioso. Um pobre imbecil, sequestrado e corneado pelo irmão, Dom Pedro II, o Pacífico. Melhor que uma biografia, o bom cognome é a impressão digital ampla, global, pessoal e intransmissível, do sujeito cidadão. Permitam-me que ilustre este ponto de vista.
Conheci há três décadas, na Lusa Atenas, mestres com alcunhas tão extraordinárias como «Caga-Tacos» e «Piça-Fria». Nomes, apelidos? Levou-os o olvido. Mas permanece a memória do primeiro lente, baixo, atarracado, estilo José Augusto Seabra, em saltos-altos, cuspindo toda a assistência enquanto debitava sapiência. E o segundo, qual Salazar, em estado de viuvez perpétua, embuçado, clandestino, nos prostíbulos do Terreiro da Erva, onde entesava e coisava, dizia-se, mais rápido que um coelho, sempre, sempre, calças arreadas mas sem despir o sobretudo.
Não avancemos na ordinarice. Pois no pequeno mundo onde fui criado havia alcunhas tão surrealistas como «Sr. Cadeira de Estilo». Era um «gentleman» com ares de Meneres de Pimentel, magro, distinto, de parcimonioso discurso, amavelmente convencional, que se deslocava com a mesma elegância e solenidade de uma cadeira Chippendale, se lhe fosse atribuído o dom da locomoção. E o «Sr. Bule-Chinês», baixo, gordito, cara em lua-cheia, sorriso posto e pálpebras semicerradas, com uma enorme penca recurva e afilada, de onde se esperava, a todo o momento, a saída de chá de Jasmim.
Mais vulgar, o coronel Buda, rebocando, dois passos atrás, a malvada esposa, madame Buda-Peste. Na repartição de finanças, era o Sr. Vaquinha, combinação natural entre a tranquilidade bovina e o pasto burocrático. E, dirigindo rendimentos, o Bezerrinho de Ouro, mansidão idêntica, mas recheada de heranças. Por falar em mamíferos ilustres, destaque ao Cavalo Branco, Governador Civil, Coronel de Cavalaria, muita estampa para pouco miolo, prova provada de que marcar passo atrofia o cérebro. Nos ossos do ofício, cito um tal Freitas dos Cachorros, encarregado do canil municipal, com negócio clandestino de fabrico de escovas em pelo de canídeo. Filho de tal sorte, assentou praça na PIDE: era o inspector Freitas Cão. Consorciado com uma Lulu fraldiqueira, Dona Maria Luísa, vulgo de Marilu Au-Au. E, figuras públicas, Miss Baby e o Sr. Marléne, vetustas bichas a quem rendo homenagem, pela inovação e criatividade com que abalaram os alicerces da cidade.
Poderia apresentar o Queijada, o Manteiga, o Vaselina, o Broxa, o Marmeladoff, o Focinho-Roído, o Destrava-Abelhinhas, o Pele-e-Osso, o Filho-da-Amália, o Elefante Místico, o Dr. Não-É, o Dr. Verdelejo, o Dr. Foguete Eléctrico e um nunca acabar de personagens. Culminando no «1º de Abril», confabulador por excelência, inventor de fortunas imaginárias, antepassados ilustres, gloriosos feitos e notícias falsas. Ou não fosse «jornalista» correspondente das agências ANI e Lusitânia. Tão exagerado, tão exagerado, que, em cada três afirmações, quatro eram seguramente falsas. Pálido rival, só o «31 de Março», outro borda-de-água, forçado a tomar esta alcunha porque o dia das mentiras já estava ocupado.
Aviso final: todas as figuras ora referidas, incluindo D. Afonso VI, o Vitorioso, nunca existiram. São mera ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Pretendi tão-só demonstrar que uma boa alcunha vale mais que o nome, nº fiscal do contribuinte, etecetera e tal. Adeus.
Destaque: Há quem não aprecie alcunhas, porque ofensivas, pejorativas, depreciativas. Nada mais disparatado. Pois não está a História Pátria recheada de alcunhas ilustres, como D. Manuel o Venturoso, Afonso o Gordo, Pedro o Cru, o Capelo, o Conquistador, o Povoador, e, suprema ironia, Afonso VI, o Vitorioso.
PUBLICO-1994/07/05-116
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