terça-feira, 18 de agosto de 2020

Como se fecha uma linha

1) A primeira coisa já está feita: desinvestir durante largos anos. A maioria das linhas secundárias portuguesas estão sem investimentos há muitas décadas. As velocidades são baixas, as instalações têm um aspecto degradado, o material circulante é antiquado e pouco confortável.
2) A partir do momento em que se decide a morte de uma linha, começa-se por fechar algumas estações sob o argumento de que não faz lá falta o pessoal, pois os comboios podem continuar a efectuar paragem, sendo a venda de bilhetes feita pelo revisor.
3) Com as estações vazias, e tratando-se de via única, o regime de exploração tem que ser alterado. Em vez do cantonamento telefónico em que o chefe de uma estação pede o avanço do comboio para a estação seguinte, adopta-se o Regime de Exploração Simplificado, em que é o próprio revisor que desce do comboio para telefonar a pedir via livre.
O novo sistema de exploração é mais barato, mas tem como resultado uma via férrea com edifícios deteriorados, sem vigilância, sem serviços comerciais, sem informações, sem nada.
4) O passo seguinte é afastar ainda mais os passageiros da ferrovia e obrigá-los a soluções rodoviárias. Muda-se os horários de maneira a não servirem ninguém. Os comboios chegam à cidade depois das oito ou nove da manhã, para não levar ninguém para as escolas ou para os empregos, e saem muito antes ou muito depois do fim da tarde. Arranja-se canais horários em horas de poucos passageiros para as composições circularem vazias. E para maior perversidade não se faz ligações decentes das linhas secundárias às da rede principal. Esvazia-se assim as primeiras e amputa-se também o tráfego das linhas principais.Eis a prova de que a linha dá prejuízo. Nem é preciso olhar para os números. Circulações vazias, estações degradadas, horários que não convêm, enfim, a habitual imagem negativa que o comboio tem em Portugal.
5) Depois, basta negociar com as autarquias. Pede-se a anuência para o encerramento da linha em troca da construção de uma variante, o arranjo de umas estradas, uns troços de uma qualquer IP ou IC (muitas vezes já prevista anteriormente), ou até um quartel dos bombeiros ou uma escola secundária. Estuda-se cuidadosamente as datas por forma a que o encerramento da linha não coincida com ano de eleições autárquicas ou legislativas.
6) Um acidente que interrompa a via pode ser um pretexto. Mas também pode ser a mudança do horário de Inverno para o de Verão ou vice-versa. Um dia qualquer, a linha fecha e o comboio deixa de apitar.

PUBLICO-1995/07/11

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