terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Qwert

O leitor por certo já terá reparado que os teclados dos computadores têm as letras dispostas de uma maneira estranha. É o que antigamente se chamava teclado internacional e que começa com as letras «qwert», de onde recebe o seu nome. Há alguns anos, quando se utilizavam máquinas de escrever, o comprador podia escolher entre vários sistemas de teclado, mas sobretudo entre este «qwert», uma variante francesa «azert» e aquilo a que se chamava o teclado nacional, ou «hcesar».

Há algumas décadas, ao que se conta, as máquinas de escrever «qwert» estavam proibidas no nosso país, tal como o estava a Coca-Cola e muitos livros. Diz-se que Salazar queria ter o controlo sobre as máquinas vendidas e por isso não permitia o teclado internacional. Será verdade? Não seria uma proibição que destoasse do estilo de governo da época, mas nunca o consegui confirmar.

De uma maneira ou de outra, a disposição das letras é muito estranha. Poder-se-á pensar que os que a conceberam fizeram estudos até chegarem a um teclado optimizado, que permitisse escrever de forma mais cómoda. De certa forma fizeram-no, mas ao contrário do que se pode à primeira vista pensar. As primeiras máquinas de escrever tinham formas curiosas para escolher as letras. Umas tinham um dispositivo circular, que se rodava até obter a letra escolhida, pressionando-se então uma alavanca. Outras tinham as letras numa fileira longa, tal como um piano. Só mais tarde, em 1870, o norte-americano Charles Latham Scholes concebeu o teclado com a disposição actual. Aí se encontrava já a disposição de letras em três fileiras, seguindo a ordem QWERT na primeira linha.

Porque é que Scholes evitou a ordem alfabética? Porque queria resolver um problema mecânico das primeiras máquinas de teclado. Nessa altura, o utilizador encravava frequentemente as teclas quando as digitava muito rapidamente, pressionando duas quase em simultâneo. Por isso, Scholes colocou as letras mais frequentes, tais como o «E» e o «I», em pontos opostos. Outros teclados, nomeadamente os das máquinas de linotipia, não seguiram esse modelo. Tinham a sigla «SCHRDLU», seguindo a ordem aproximada da frequência das letras na língua inglesa. Essas máquinas, ainda há poucos anos muito frequentes nos jornais e nas tipografias, possuíam um teclado com a ordem copiada da das antigas gavetas de composição manual, que estavam também organizadas pela ordem de uso dos caracteres.

Os primeiros dactilógrafos usavam um ou dois dedos em cada mão, tal como os linotipistas ainda recentemente o faziam. Pouco depois da difusão do teclado QWERT, o norte-americano Frank McGurrin resolveu memorizar o teclado e utilizar todos os dedos. Depois de ter ganho um concurso de rapidez dactilográfica em 1877, o seu método espalhou-se por todo o mundo.

Na segunda metade do século XX surgiram as máquinas de escrever eléctricas e, depois, os computadores. O problema das letras encravadas deixou de existir. Porque é que subsiste ainda o QWERT? Uma razão é, naturalmente, a inércia. Mas há motivos mais importantes. Durante muitos anos, os técnicos e os psicólogos fizeram estudos para melhorar o teclado. A primeira e surpreendente descoberta é que o teclado alfabético, que pareceria mais intuitivo, é praticamente tão difícil de aprender como o QWERT ou o HCESAR. A segunda descoberta é que, depois de aprendidos, os teclados são praticamente todos iguais. Um teclado optimizado por Dvorak, um dos fundadores da engenharia industrial moderna, e que resultou de estudos prolongados, revela-se apenas 10% mais rápido que o QWERT, quando os dactilógrafos estão igualmente experimentados em ambos os sistemas. Valerá a pena fazer a mudança?

Igualmente curioso é que a separação das letras mais frequentes, deixando de ter o interesse original de evitar problemas mecânicos, se revela muito útil no uso moderno. Nos dias de hoje, praticamente toda a gente utiliza o computador. Na sua maioria, os utilizadores usam um ou dois dedos em cada mão. Assim, é muito útil ter as letras mais frequentes espalhadas pelo teclado. Com as voltas que a tecnologia dá, o QWERT passou a ter vantagens que o seu criador não imaginava. Os teóricos do «design» tiram uma lição: depois de criado um instrumento de sucesso, é preciso cuidado com os aperfeiçoamentos inúteis, é preciso saber parar.

Nuno Crato, Vidas, 21/07/2001

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