sexta-feira, 20 de abril de 2012

Ténis e vitorinos ou como se trata o português com os pés

Quase estive tentado a começar esta crónica por "aqui há atrasado …". Mas meti travão à caneta, reflecti durante uns segundos franzindo ligeiramente o sobrolho, que é a expressão natural de quem reflecte, mergulhei outra vez na folha em branco, e o resultado acabou por ser este que o estimado leitor tem à sua disposição até ao ponto final que se segue.

"Aqui há atrasado" é uma mui tripeira maneira de dar início a uma história. É uma espécie de "aqui há uns tempos" dos portuenses, usado, com frequência, para descrever acontecimentos passados, mais ou menos remotos. É uma expressão áspera que não utilizo e a que nunca me consegui habituar, apesar dos meus amigos, sobretudo os que não são do Porto, me dizerem com alguma frequência que, volta e meia, lá me escapa uma alocução carregada de sotaque nortenho.

Para esta crónica abro uma excepção.
Aqui há atrasado, ainda eu dava os primeiros passos nesta nobre profissão de jornalista nas ondas hertzianas da Rádio Renascença, o meu chefe de redacção chamou-me ao seu gabinete, com um ar de poucos amigos. Tinha acabado de escutar uma notícia minha que iria ter desenvolvimentos importantes dois dias depois. Na minha prosa, escrevi e li que o assunto voltaria à antena "além de amanhã". O homem ficou estarrecido:

- "Além de amanhã?!? Mas que porra é esta de além de amanhã?"

Julguei que estava a brincar, que era mais uma daquelas partidas que se pregam aos novatos nas redacções, quando os colegas mais velhos combinam com o chefe lixar a cabeça ao caloiro. Mas a verdade é que o chefe, como toda a gente sabe, não brinca em serviço, e também o meu não estava para brincadeiras. Que além de amanhã não existe, que isto não é português que se apresente, que aquilo que eu devia ter dito era "depois de amanhã". Caramba! Chefe é chefe, mas a verdade é que não me dei por vencido e, às escondidas, iniciei um inquérito interno, desde a senhora da limpeza até aos colegas jornalistas. Nenhum tinha ouvido nunca a expressão "além de amanhã"; alguns, assim de repente, nem lhe vislumbravam o sentido. No ar, e na minha cabeça, pairava já um certo clima de complô, não sei se me faço entender. Insisti, em horário pós-laboral, junto dos meus colegas de faculdade. Nada. Ninguém chegava lá. Já a entrar em desespero levei o assunto ao meu professor de gramática, mestre na arte de bem falar o português. E fez-se luz. "Além de amanhã" é um regionalismo que, à semelhança do "aqui há atrasado" do Porto, tem as suas fronteiras na minha zona de proveniência, a bela (perdoem-me a imodéstia) cidade de Aveiro.

É assim a língua portuguesa. Rica como poucas, traiçoeira às vezes, fortemente influenciada pelas suas diferenças regionais, por séculos de permanência nas sete partidas do mundo e, claro, pelos media, que escancaram as portas ao exterior, sobretudo aos países anglo-saxónicos.

E é aqui, ao nível da comunicação global, sobretudo a que nos chega através da televisão, que se recomendam cautelas. Porque se, como alguns defendem, não cabe às televisões educar as pessoas (e essa é outra discussão), cabe-lhes pelo menos a tarefa de não as deseducar e de preservar um bem comum:
A língua portuguesa.

Não sou daqueles puristas que acham que na língua não se mexe, nada de acordos ortográficos, nada de introdução de novas expressões, algumas delas de origem estrangeira. O português, como qualquer outro idioma, não é estático, como se prova de leitura de "Os Lusíadas" ou de "Os Maias". Mas também não se pode dar à língua tudo o que vem à "net" ou à rede telefónica.

A explosão dos telemóveis, entre os mais jovens, está a criar novos códigos de comunicação oral e escrita. As mensagens SMS, trocadas nos intervalos das aulas dos liceus portugueses, tantas vezes com os mensageiros a escassos metros de distância dos seus interlocutores, são autênticos códigos secretos, indecifráveis mesmo para os melhores espiões de qualquer exército moderno. Muitas dessas mensagens passam nos rodapés das televisões portuguesas, sobretudo no cabo, mas também em certos programas das generalistas de sinal aberto, como é o caso do "Domingo é Domingo", da televisão pública, de todas a que mais atenção devia prestar à língua-mãe.

Por parte dos programadores há uma certa complacência em relação ao uso do português, que vai do pormenor das mensagens escritas ao recurso a expressões tipicamente lisboetas, de onde parte quase tudo o que é emitido nas nossas televisões.

Num anúncio recente da TV-Cabo a apresentadora explica-nos a utilização de um aparelho remetendo-nos para uma "tecla encarnada", que por acaso é vermelha em todo o país excepto em Lisboa. Também é frequente ouvir falar dos "ténis" que, como toda a gente sabe, é um desporto muito popular, disputado com equipamento específico onde não podem faltar as indispensáveis sapatilhas.

Fosse eu para a televisão dizer que a venda de "chussos" aumentou exponencialmente no último Inverno por causa das fortes chuvadas ou que o negócio dos "vitorinos", em S.João da Madeira, está a caír devido à concorrência dos países asiáticos, e sempre queria ver as reacções.

E olha se eu tinha começado esta crónica por "aqui há atrasado …"!!!

Carlos Rico, SIC Online , 11/09/2003

GLOSSÁRIO:

Chusso – Guarda-chuva
Vitorinos - Sapatos

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