quinta-feira, 24 de maio de 2012

E Se Depois?...

Se usar uma guitarra eléctrica Gibson para compor um vira e se essa guitarra for fabricada no Japão, estou a fazer música americana, portuguesa ou japonesa? Ou é 33,33333... por cento para cada? E se se reeditar o disco «Palavras ao Vento», da primeira formação da Resistência -- em que, juntamente com cinco músicos nascidos em Portugal, havia dois brasileiros, um húngaro, um músico nascido em Moçambique e outro em Macau -- esse disco será de música portuguesa ou de música luso-vera- cruz-magiar-macua-pataca? Ou é fifty-fifty portuguesa e estrangeira? E se gravar, cantando em português, com cavaquinhos fabricados no Minho e com uma bateria feita à base de bombos de Lavacolhos, pandeiretas da feira da Sra. da Póvoa e adufes da Sra. do Almortão, uma música tecno-jungle-garage, isso é música portuguesa? E se o gravador vier da Formosa? E se as peles dos adufes forem de ovelhas espanholas? E se a madeira dos cavaquinhos for havaiana e trouxer no verso a frase «aconselhável para a fabricação de uqueléles»? Percentagens confundidas. Vamos a casos concretos: E se a Amália já tivesse gravado, como de facto gravou, nos estúdios Abbey Road ela transformar-se-ia imediatamente numa espécie de sexto Beatle (partindo do princípio de que George Martin é o quinto)? Com Que Voz ficaria «Michelle», célebre fado composto no Algarve? E se a Dulce Pontes interpretasse um tema de Ennio Morricone, como, é verdade, já interpretou, ela ficaria imediatamente transformada numa calabresa ou siciliana que canta em uésternes-esparguete? E se o Paulo Bragança misturasse com os fados dele, como já misturou, ritmos das ilhas das Caraíbas e até uma versão de Nick Cave, passaria a ser um cantor insular eixo-Caribe- Austrália? Que haja um Farol que o guie, sim? E se o Quim Barreiros usasse, como de facto usa, um acordeão? Faria música francesa? E seria boa? Não me lixem! E se ele utilizar um sample de um tema tirolês, por causa dos chapéus, muita lôcos, passaria a ser austríaco? E o bacalhau de que ele fala, por ter sido pescado em águas da Gronelândia, deixa de ser passível de ser cozinhado numa das cem receitas portuguesas que existem dedicadas ao bicho? E se o Carlos Paredes tocasse com o Charlie Haden, o Pedro Abrunhosa com Maceo Parker e os GNR com espanhóis vários, um passaria a ser guitarrista de jazz, o outro afilhado do James Brown (apesar da cor) e o Rui Reininho uma espécie de Miguel Bosé intelectual? E se os Blind Zero, os Tina and The Top Ten ou os Supernova cantassem em inglês, como realmente cantam, e fizessem rock, como fazem, seriam imediatamente estrangeiros? Se calhar são. Mas são bons, ou não? E se compositores, músicos e cantores -- como Emmanuel Nunes, Carlos Zíngaro ou Maria João -- passassem mais tempo -- como passam -- a trabalhar no estrangeiro do que em Portugal deixariam de ser portugueses por isso? E a música que fazem é portuguesa? Nunca foi? Alguma vez será (isto, apesar dos tradicionais portugueses que Maria João canta)? E se os Despe e Siga tocassem, como tocam, versões de canções estrangeiras, e usassem, como usam (acho eu, que vi de longe) roupa interior Hugo Boss (hi, hi, hi) passariam a ser da banda do Bruce Springsteen? E se os Xutos & Pontapés tivessem interpretado «A Minha Casinha» e os Mler Ife Dada o «Ele e Ela» («sei quem ele é, ele é um bom rapaz, um pouco tímido até»), êxitos da música feita em Portugal nos anos sessenta, com guitarras eléctricas, as canções transformar-se-iam imediatamente em rock? Ah, o «Ele e Ela» era cantado por uma tal Madalena Iglésias, venezuelana ou castelhana ou guatemalteca ou lá o que era? E se os estrangeiros começassem de repente a cantar coisas portuguesas horrorosas como o «Vira-Vira» dos malogrados Mamonas Assassinas (grupo brasileiro), baseado no tema do Roberto Leal (cantor português?), passariam a fazer música portuguesa? Casos menos graves: o «Saudade», do francês Étienne Daho, o «Educação», das alemãs Rainbirds, ou o «Caralho Voador», dos Faith No More, são canções portuguesas? E os Extreme, Raincoats, Rocket From The Crypt, Van Halen, Asia, Fleetwood Mac e por aí fora, só por terem músicos portugueses ou de ascendência portuguesa, passam a ser grupos semi-lusos? E os discos em que participa Luís Jardim também? A morna e o tango descendem do fado? O samba descende do malhão (como parece que descende na canção «They Don't Care About Us», de... Michael Jackson!)? De um ovo nasceu a primeira galinha ou foi uma galinha que pôs primeiro o primeiro ovo? Ou um pterodáctilo? Maria João Pires -- a mais respeitada pianista portuguesa -- nunca gravou nenhuma peça composta por um português e é duvidoso que alguma vez tenha interpretado alguma ao vivo. É menos portuguesa por isso? E se tivesse ganho o Grammy (prémio da indústria discográfica americana), que não ganhou, para o qual estava nomeada? Era imediatamente deportada para os Estados Unidos?

António Pires, Blitz, 05/03/1996

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